Undiú: o Oráculo Popular de Haroldo Saboia
por Diego Matos
2019
Undiú é a segunda música do lendário álbum branco de João Gilberto. Lançado em 1973, o disco demarca um momento de resistência, reinvenção e sofisticação da produção cultural brasileira nos anos mais obscuros da ditadura civil-militar. Após a verborragia de “Águas de Março” que abre o disco, é Undiú que entra e toma sentido oposto à dualidade e as contraposições da canção anterior. Nela, a palavra, deixada de lado, é substituída pelo canto hipnótico das onomatopeias e notas do artista. Se perdemos o sentido da língua, ganhamos uma unidade de força que é a própria canção. Undiú parece ter a potência de uma medida: a essência deflagradora de uma imagem musical.
Canção - letra e música – é peça cultural que atua como estopim da pesquisa continuada e processual e, por conseguinte, da estruturação do trabalho do artista. Como ele mesmo pontua, o gesto artístico evoca convite feito por Ferreira Gullar em seu poema “Agosto 1964”, no qual escreve “retiramos algo e com ele construímos um artefato, um poema, uma bandeira”. Portanto, tendo em vista à canção popular enraizada pelo samba, as palavras extraídas e ordenadas nessa produção de Haroldo Saboia ressoam como um gesto que busca uma fala intimista mas de valor coletivo.
Oráculo é ao mesmo tempo aquele com poder de voz, uma divindade, um profeta, um pensador, um orador ou mesmo um interprete, como também é a palavra da mensagem, uma opinião inconteste, uma razão ou resposta, dogma ou convicção, sabedoria, exatidão, luz, aceitação, aprovação ou solução. Cada sentido exposto por analogia coloca a complexidade daquilo que a obra irá sugerir.
Por sua vez, Popular pode ser entendido como o que emana do povo, que provem do coletivo ou que nele é compreendido ou reconhecido. Está atrelado a potência das massas e sua influência. Também por analogia, popular é notoriedade, fama e glória. Além, pode ser célebre, apoteótico, singular ou digno. Por outro lado, carrega a noção preconceituosa de coisa sem distinção, sem valor erudito ou material. Não menos importante, pode ganhar também proximidade com convivência ou algo que é por definição expansivo e comunicável: sentido esse muito caro à obra do artista.
Oráculo Popular (2019), portanto, é a operação poética, visual e matérica proposta aqui enquanto trabalho de arte. Nele, é dada a ver uma pesquisa contínua e cotidiana pelo universo da canção popular brasileira, naquilo que se convencionou chamar de música popular brasileira com a estruturação de uma indústria musical, identificável pelos seus modos de produção e pela sua potência de disseminação e consumo cultural. Para essa ocasião, valendo-se da ideia da bandeira, do estandarte, da faixa de anúncio ou do cartaz em manifestação, o artista seleciona 21 trechos de versos da canção brasileira em primeira pessoa, incorporando nessa escolha 21 interpretações das mais diversas autorias. Se o exercício inicial é de extração e edição, sua finalidade é intensificar o valor da oralidade e o poder da palavra que emana do saber popular.
Haroldo Saboia (Fortaleza, 1985) nos convoca a operar um exercício poético e musical, de implicação pessoal, ao dar eloquência publica às falas confessionais da música popular brasileira. A extração de versos é minuciosamente tramada, para depois serem esses mesmos versos conduzidos à condição de palavras ordem: por vezes de alento ou conforto, por outras de alerta ou resistência, entre tantas outras necessidades. É enfim, como razão última do trabalho, a construção de um palimpsesto iconográfico desse lugar do eu em relação ao público, num movimento do privado à esfera pública, revelando-se uma natureza política em constante transmutação. São imagens musicais que se constituem por meio da representação textual em bandeira. Tais imagens ganham inclusive o valor político de um dispositivo de protesto ou medida social tal qual identificado pelo jornalista Franklin Martins, em sua série de livros intitulada “Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República”.
O trabalho é também a circularidade, a força hipnótica e a infinitude presentes em João Gilberto agora derivadas para cada fala adotada nos estandartes que, em conjunto, formam uma peça coletiva. Nesse coletivo, se a frase síntese do gesto artístico, segundo Haroldo, vem da canção “Nu com a minha música”, escrita e interpretada pelo Caetano Veloso, o acalanto final do trabalho, no nosso entender, vem da sabedoria de Gilberto Gil, na canção “Extra”: “Eu, tu e todos no mundo, no fundo, tememos por nosso futuro”. E segue, numa vontade de resistência, em paridade com esse momento obscuro de Brasil, como um pedido ao oráculo: “ET e todos os santos, valei-nos, livrai-nos desse tempo escuro”.
Diego Moreira Matos é pesquisador, professor e curador. Graduou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Ceará. Concluiu mestrado (2009) e doutorado (2014) pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Foi professor substituto do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará nas áreas de história e teoria da arquitetura e do urbanismo. Foi assistente de curadoria da 29ª Bienal de São Paulo (2010), e trabalhou no Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake, São Paulo (2011–2013). Foi curador da mostra coletiva Da Próxima Vez Eu Fazia Tudo Diferente, Espaço Pivô (2012). Atuou como professor nos programas educativos da Bienal de São Paulo (2011–2013). Também foi professor em cursos livres no Instituto Tomie Ohtake, no Sesc São Paulo e no Centro de Cultura Judaica. Foi curador assistente do 18° Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil. Foi curador da exposição paralela do 19° Festival, “Quem nasce pra aventura não toma outro rumo”. Foi coordenador do Núcleo de Acervo / Arquivo e Pesquisa da Associação Cultural Videobrasil, colaborando também com o programa curatorial da Instituição (2014–2016). Vive e trabalha em São Paulo, Brasil