eu quero nascer, eu quero viver

Oráculo Popular





Fotografia de Mayra Azzi (2019)


Informações técnicas:
bandeira
algodão cru e feltro

É uma pesquisa acerca da canção popular brasileira, sobretudo o samba como elemento que distingue e reivindica a memória da diáspora africana, construo uma iconografia de versos de canções de diferentes períodos históricos. Portanto, é um trabalho de vocação pública e que parte do corpo como unidade advinda desta união entre verso, gesto e bandeira. Deste modo, separo os versos escritos e conjugados sempre na primeira pessoa, dando-lhes forma de bandeiras e estandartes. Assim, compilar estes versos do passado no presente, é, de algum modo, uma tentativa de interrogar sobre nossas singularidades, de imaginarmos um futuro, de identificar a partir destes versos já enunciados, perguntas ainda não respondidas e não formuladas.  Como em todo oráculo, para quem sabe perguntar, há sempre resposta.






Fotografias da exposição no espaço Publica, SP, 2019.



Undiú:
o Oráculo Popular
de Haroldo Saboia

Undiú é a segunda música do lendário Álbum Branco de João Gilberto. Lançado em 1973, o disco demarca um momento de resistência, reinvenção e sofisticação da produção cultural brasileira nos anos mais obscuros da ditadura civil-militar. Após a verborragia de “Águas de Março”, que abre o disco, é “Undiú” que entra e toma o sentido oposto à dualidade e às contraposições da canção anterior. Nela, a palavra, deixada de lado, é substituída pelo canto hipnótico das onomatopeias e notas do artista. Se perdemos o sentido da língua, ganhamos uma unidade de força que é a própria canção. “Undiú” parece ter a potência de uma medida: a essência deflagradora de uma imagem musical.

Canção — letra e música — é a peça cultural que atua como estopim da pesquisa continuada e processual e, por conseguinte, da estruturação do trabalho do artista Haroldo Saboia. Como ele mesmo pontua, o gesto artístico evoca o convite feito por Ferreira Gullar em seu poema “Agosto 1964”, no qual escreve: “retiramos algo e com ele construímos um artefato, um poema, uma bandeira”. Portanto, tendo em vista a canção popular enraizada pelo samba, as palavras extraídas de canções da mpb e ordenadas nessa produção de Haroldo Saboia ressoam como um gesto que busca uma fala intimista, mas de valor coletivo.

Oráculo é, ao mesmo tempo, aquela com poder de voz, uma divindade, a profetisa, uma pensadora, uma oradora, ou mesmo uma intérprete, e a palavra da mensagem, uma opinião inconteste, uma razão ou resposta, dogma ou convicção, sabedoria, exatidão, luz, aceitação, aprovação ou solução. Cada sentido exposto traz à tona, por analogia, a complexidade daquilo que a obra irá sugerir.

Por sua vez, Popular pode ser entendido como o que emana do povo, que provém do coletivo ou que nele é compreendido ou reconhecido. Está atrelado à potência das massas e sua influência. Também por analogia, popular é notoriedade, fama e glória. Além, pode ser célebre, apoteótico, singular ou digno. Por outro lado, carrega a noção preconceituosa de coisa sem distinção, sem valor erudito ou material. Não menos importante, pode ganhar também proximidade com convivência ou algo que é por definição expansivo e comunicável: sentido esse muito caro à obra do artista.

Oráculo Popular (2019), portanto, é a operação poética, visual e matérica proposta aqui enquanto trabalho de arte. Nele, é dada a ver uma pesquisa contínua e cotidiana pelo universo da canção popular brasileira, naquilo que se convencionou chamar de música popular brasileira, com a estruturação de uma indústria musical, identificável pelos seus modos de produção e pela sua potência de disseminação e consumo cultural. Para essa ocasião, valendo-se da ideia da bandeira, do estandarte, da faixa de anúncio ou do cartaz em manifestação, o artista seleciona 20 trechos de versos da canção brasileira em primeira pessoa, incorporando nessa escolha 21 interpretações das mais diversas autorias. Se o exercício inicial é de extração e edição, sua finalidade é intensificar o valor da oralidade e o poder da palavra que emana do saber popular.

Haroldo Saboia (Fortaleza, 1985) nos convoca a operar um exercício poético e musical, de implicação pessoal, ao dar eloquência publica às falas confessionais da música popular brasileira. A extração de versos é minuciosamente tramada, para depois esses mesmos versos serem conduzidos à condição de palavras-ordem: por vezes de alento ou conforto, por outras de alerta ou resistência, entre tantas outras necessidades. É, enfim, razão última do trabalho a construção de um palimpsesto iconográfico, representativo desse lugar do eu em relação ao público, num movimento do privado à esfera pública, revelando-se uma natureza política em constante transmutação. São imagens musicais que se constituem por meio da representação textual em bandeira. Tais imagens ganham, inclusive, o valor político de um dispositivo de protesto ou medida social tal qual identificado pelo jornalista Franklin Martins, em sua série de livros intitulada “Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República”.

O trabalho é também a circularidade, a força hipnótica e a infinitude presentes em João Gilberto, agora ressignificadas em cada fala adotada nos estandartes que, em conjunto, formam uma peça coletiva. Nesse coletivo, se a frase-síntese do gesto artístico, segundo Haroldo, vem da canção “Nu com a minha música”, escrita e interpretada por Caetano Veloso, o acalanto final do trabalho, no nosso entender, vem da sabedoria de Gilberto Gil, na canção “Extra”: “Eu, tu e todos no mundo, no fundo, tememos por nosso futuro”. E segue, numa vontade de resistência, em paridade com esse momento obscuro de Brasil, como um pedido ao oráculo: “ET e todos os santos, valei-nos, livrai-nos desse tempo escuro”.

Diego Matos



1 “Undiú” é canção que João Gilberto inventou a partir da lírica do escritor Jorge Amado. Foi originalmente intitulada “Lamento de Vicente”, por ocasião da produção de uma trilha sonora composta por Moacir Santos, para o filme Seara Vermelha (1963).
Dirigido pelo Alberto D’Aversa, o filme é uma adaptação da primeira parte do romance “Seara Vermelha” (1946), de Jorge Amado. Anos mais tarde, João Gilberto, que havia colaborado com o maestro Moacir Santos no filme, retomou a canção e
manteve apenas a palavra “Undiú”, a única que supostamente restou do texto original.