NOTAS SOBRE OS EFEITOS DOS AFETOS
Por Moacir dos Anjos2021
1. Haroldo Saboia inventa modos de registrar, em vários trabalhos, o que resulta de encontros de seu corpo com territórios diversos. Seu intento não se confunde, contudo, com a vontade, comum a quase qualquer viajante, de historiar factualmente os deslocamentos feitos. Tampouco pretende apenas evocar a singularidade de tais percursos por meio de vestígios materiais ou de imagens produzidas em seu transcurso. Ainda que formalmente constituída de objetos, fotografias, vídeos e textos, sua produção não tem por foco a tradução, em formas sensíveis, dos lugares visitados. O que busca é recriar, como coisas, cenas ou palavras, o que tais visitas deixam impresso em seu corpo. Nesses trabalhos, Haroldo Saboia inventa modos de registrar afetos.
2. A noção de afeto aqui empregada segue, sem a pretensão da precisão conceitual, o sentido consagrado pelo filósofo holandês Baruch Spinoza. Afeto como o que resulta, sobre um corpo, do contato deste com outros corpos quaisquer – corpos que podem ser pessoas, objetos ou lugares. Afeto como expressão dos efeitos que corpos produzem sobre outros corpos quando estes se encontram ao acaso. Como resultado, portanto, de um processo de afetação, de efeito causado, de desacomodação de um corpo por outros ao longo de um tempo dado. Afetos que podem ser de alegria ou de tristeza, aumentando ou diminuindo a potência de agir e de pensar de quem é tocado por algo. Ou que podem mesmo ser afetos ambíguos, capazes de simultaneamente animar ou deprimir o corpo afetado, sendo campo aberto para disputas agônicas do desejo.
3. O efeito do encontro de um corpo com outro não gera, contudo, um conhecimento imediato, não possuindo súbito significado. Os afetos são, em uma primeira instância, assignificantes; eles simplesmente atravessam e impactam corpos. É somente em um momento posterior na duração dos eventos que os afetos são entendidos como representações de algo e são traduzidos em linguagem, sendo a eles atribuídos, então, sentidos variados. Os significados possíveis dos trabalhos de Haroldo Saboia podem ser tomados, assim, como equivalentes sensíveis dos “efeitos dos afetos”. Dos efeitos, sobre o corpo do artista, do que resulta de encontros transitórios que estabelece com certos lugares. Mas equivalentes, também, dos efeitos que os objetos, as imagens e os textos por ele criados produzem sobre os corpos de quem com eles se depara.
4. Se os contatos que Haroldo Saboia promove entre seu corpo e vários lugares são sempre singulares, também o são os afetos que tais encontros geram. A cada deslocamento feito – com distâncias, ritmos e intensidades particulares – se associam impressões únicas dos territórios visitados sobre o artista, que as tentativamente traduz, como produção artística, para o campo largo do sensível. O esforço de criar equivalências das experiências das viagens em termos de coisas, figuras e palavras é o mesmo esforço de criar significados para o impacto do que se passou durante os percursos realizados. E é nesse processo de tradução talvez impossível da afetação do corpo em uma materialidade correspondente que é fabricado um inventário de procedimentos, gestos e imagens, bem como as maneiras de articulá-los como trabalhos. Os deslocamentos e o que deles resulta são, assim, produção de linguagem feita ao longo de um tempo dado.
5. Outro modo de entender a criação de equivalências sensíveis para o efeito dos encontros entre um corpo e os lugares é pensar naquelas como mapas de territórios visitados. Mapas que, em conformidade com o que ensina a ciência cartográfica, são sempre recortes ou abstrações de realidades impossíveis de serem integralmente representadas. Fossem outras as pessoas a percorrerem aqueles espaços, outros seriam os afetos que resultariam das viagens; e distintas seriam, certamente, as formas de tentar fixá-los como objeto, imagem ou texto. Assim como diversas são as experiências que cada pessoa tem ao esbarrar, em situações variadas, com os trabalhos-mapas que o artista-cartógrafo elabora. Não há traduções completas ou certas de situações complexas, mas apenas ficções que se prestam, como marcos anotados em um mapa, a servir de guias provisórios e incompletos para que se atribuam àquelas possíveis significados.
6. Foram seis os lugares que Haroldo Saboia se propôs a visitar no Ceará, estado onde nasceu: as cidades chamadas Deserto, Ventura, Solidão, Miragem, Passagem e Prazeres. Todas pequenas – algumas quase dissolvidas em terra vazia ou ainda mais diminuídas diante do imenso mar próximo. Os afetos surgidos das incursões nesses locais estão inevitavelmente atravessados não somente por suas paisagens e gentes, mas também por seus nomes, posto que é certo que estes modulam a expectativa do que se pode ali encontrar. Ademais, inventariar as impressões que essas visitas deixam sobre o corpo – processo que equivale à criação de vários trabalhos – é também processo sinestésico, em que o estímulo a um sentido provoca reações em outro, entrecruzando visão, olfato, audição, paladar e tato. Quando falo trem, um trem atravessa minha boca – título de um vídeo feito a partir da ida a Solidão – toma uma palavra que designa algo concreto como sensação de fato impossível de ter já acontecido. Mas que é memória de afeto passado.
7. Deslocamentos entre espaços são também trajetórias feitas no tempo. Esse movimento duplo não escapa aos esforços de Haroldo Saboia de traduzir afetos em algo a ser partilhado com mais gente. A contagem das distâncias é também contagem de uma duração. A marcação do longe e do perto vem junto da marcação do demorado e do breve, mesmo quando não são experiências coincidentes, posto que a afetação de um corpo sobre outro corpo não tem métrica única ou certa. E se o tempo é coisa abstrata, o artista busca dar a ele, em seus trabalhos, a concretude do que é ordinário. Em algumas fotografias, vê-se a areia que escoa, em ritmo incerto, de uma mão quase fechada. Mão que é ampulheta desregulada que desmancha convenções assentadas sobre aquilo que dura e sobre aquilo que é rápido. Mão – de qualquer um – que constrói, nesse tempo tornado concreto, o que se chama de história; que inventa, com trabalho, doçura e violência, o que se conhece como mundo.
8. Haroldo Saboia faz, valendo-se de suportes e técnicas diversos, associações entre lugares, ações e nomes, em tentativa de descrever o que não pode ser descrito de modo indubitável. Não se trata de querer representar o que seria irrepresentável, posto que não há nada para o que não seja possível inventar um equivalente sensível. Nada escapa à linguagem, mesmo quando a palavra certa falta, a língua hesita e a voz gagueja. A algumas coisas ou fatos ou gentes só é mesmo possível se referir por meio da lacuna, da imprecisão e do fragmento. Ou por meio de ruínas, condição identificada, pelo artista, em quase toda parte por onde passa. Ruínas fotografadas ou recolhidas em pedaços que não se apresentam apenas como negatividade, mas como interrogação crítica e criativa sobre encadeamentos de acontecimentos passados. Ruínas que servem como lentes de prospecção do que está por vir ainda.
9. Os registros dos afetos que Haroldo Saboia inventa como trabalhos e oferece a pessoas quaisquer são espécies de ruínas sensíveis da memória que o corpo possui dos lugares por onde passa. Memória de algo visto, de um cheiro da tarde, de uma textura sentida na pele do rosto, de um gosto doce, de um ruído quase mudo. De muita coisa embaralhada. Registros que, quando articulados, formam um léxico que descreve o mundo de jeito novo e que desafia, portanto, entendimentos assentados e seguros. Coisas são verbos. Verbos são coisas, instrui um dos trabalhos. Léxico que ensina pelo avesso, pela deseducação de muito do que se pensava já saber. É uma aposta, é um risco, é o que a arte pode melhor fazer.
Moacir dos Anjos é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, onde coordena o projeto Política da Arte. Foi diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (2001-2006), Recife, e pesquisador visitante no centro de pesquisa Transnational Art, Identity and Nation, University of the Arts London (2008-2009). Foi curador do pavilhão brasileiro na 54ª Bienal de Veneza (2011) e da 29ª Bienal de São Paulo (2010), bem como das mostras Cães sem Plumas (2014), no MAMAM, A Queda do Céu (2015), no Paço das Artes, São Paulo, Emergência (2017), no Galpão Bela Maré, Rio de Janeiro, Quem não luta tá morto. Arte democracia utopia (2018), no Museu de Arte do Rio, Raça, classe e distribuição de corpos (2018), Minas (2019) e Educação pela pedra (2019), na Fundação Joaquim Nabuco, e Alfredo Jaar – Lamento das Imagens (2021), no Sesc Pompeia, São Paulo. É autor dos livros Local/Global. Arte em Trânsito (2005), ArteBra Crítica(2010) e Contraditório. Arte, Globalização e Pertencimento (2017).