A beleza da rosa e o oráculo popular
por Fabiana Moraes
2021

“Tens a beleza da rosa, uma das flores mais formosas/tu és a flor do meu lindo jardim – e eu a quero só para mim”.

Os versos de Beleza da Rosa, maior sucesso do cantor José Ribeiro, não possuem espertos duplos sentidos ou construções cabulosas que nos remetem a Melodias ou Velosos. Mas a composição romântica e os arranjos dramáticos da canção lançada em 1972 fazem parte de um caminho aberto há décadas em mim: recentemente, dei uma espécie de cavalo de pau no meio dessa trilha e passei a olhar de outra forma para a própria história do Brasil.

O caminho passava pelo Barro Branco, área quilombola de São Bento do Una (mas muita vezes relacionada a Belo Jardim), interior de Pernambuco. Ali, fui apresentada a uma mulher com quem estive por bem menos tempo do que eu gostaria. Alta, cabelos grisalhos, lábios cheios, a pele escura. Seu nome era Beleza da Rosa.

Contei para ela: uma vez, andando no caminho aberto pela música que a batizava, fui entrevistar o mais conhecido intérprete da canção escrita por Helvilar e Pedrinho. Falei que escrevi a respeito, que vi show, que fui até a residência de José. Eu e ela cantamos juntas sob uma árvore na qual ela sempre deixava uma cadeira, bem ao lado da ampla casa branca que construiu. Recém-apresentadas, entoamos: “tenho medo que essa paixão seja uma ilusão sem fim/tenho medo que não sejas a flor do meu triste jardim”.

Sob uma árvore ao sol agreste do meio-dia, cantei Beleza da Rosa com Beleza da Rosa. Foi incrível.

Quis saber sobre a história daquele batismo. Ela falou que havia, ali no Barro Branco (“quando era mocinha”), um lugar onde se dançava e se cantava, e que ela gostava de ir até lá para celebrar. Estranhei: primeiro, pelo fato de uma mulher, jovem, ter toda aquela liberdade a décadas atrás. “Sua família não se importava quando a senhora saía para dançar?”. Ela riu. “Não, o forró era do meu avô”.

Ouvi então o som do meu segundo estranhamento se desmantelando: eu não esperava que aquele espaço de celebração, liberdade e felicidade fosse algo tão comum no cotidiano daquela mulher sorridente. Não esperava aquela liberdade. Na verdade, sem saber, eu estava preparada para mais uma história que trouxesse nossos perrengues e percalços, nossa dor e resiliência. Percebi que, quando eu me sentei sob aquela árvore, eu já trazia uma história de tristeza relacionada às pessoas negras, principalmente na condição de quilombolas, dentro de mim. Foi Beleza da Rosa, cantando a música que a batizava, quem provocou aquele cavalo de pau no que eu pré-concebia. No pré-conceito.

Entendi que nossa história preta também é, apesar de tudo, feita de generosos nacos de felicidade, de compartilhamento, de dança, de música. Não que estes nacos fossem desconhecidos por mim, mas, discutindo há tanto sobre este e aquele abismo (e não só discutindo: sendo parte deles), eu havia privilegiado a dor. Além de mim, também toda uma população, gerações e gerações alimentadas por uma cadeia de reportagens, livros, novelas, filmes, campanhas e mesmo músicas. Nelas, nos acostumamos a ver pessoas negras sofrendo, tentando, servindo. Rindo só às vezes. É claro que o sofrimento e todas as tentativas de apagamento aconteceram e seguem seu curso das mais variadas formas. Mas, ao não visibilizar o respiro, o forró, o canto, a celebração, apagávamos também uma das mais preciosas formas de resistência a estas violências. Debaixo da árvore, Beleza da Rosa, cantando, mostrou o meu erro – e eu jamais conseguirei agradecê-la à altura por isso. Cerca de um ano depois, soube que ela havia partido.

“Quase morro/só de pensar/em perder teu carinho.”

(...)

Costumo dizer que a música foi e é também a minha literatura. Esse entendimento veio depois de ser interpelada por um incômodo que me rondava todas as vezes que alguém perguntava a mim, por conta dos livros, quais eram as minhas influências literárias. É uma questão comum feita para as pessoas que escrevem – ao mesmo tempo, ela demonstra como olhamos geralmente para fora a partir de marcadores muito específicos de classe, mas que parecem compartilhados por todos.

Para sofrer uma “influência”, eu precisaria estar exposta à literatura desde muito, e não foi bem assim que a coisa aconteceu. Somente no cursinho pré-vestibular tive um contato maior com Gracilianos, Guimarães e Machados, ainda assim de maneira instrumental, para acertar questão em prova. O meu pai, trabalhando pesado para sozinho alimentar oito pessoas, não comprava livros a não ser os didáticos. Mas o meu pai às vezes comprava discos. E eu os ouvia com atenção.

Quando vi as bandeiras, os estandartes, os chamados, os sinais musicais de Haroldo Sabóia costurados naqueles panos, entendi que ele, como eu, também leva as canções como guia e escudo - e essa percepção foi recíproca, e é por isso que eu estou aqui. Juntos, aqueles trechos de músicas do seu Oráculo Popular contam parte da história do Brasil exatamente como Beleza da Rosa me fez perceber: há cansaço e há sofrer – mas há também, apesar da dor, a visão de uma trilha clara para o Brasil.

As canções que compõem este oráculo foram escritas e/ou cantadas em sua maioria por gente preta que, imagine, atravessou um bocado de vagalhão para artista ser. Gente do samba, da poesia-requebro, do corpo que carrega o pensamento. Gente que nunca traçou a estéril separação entre suor e sinapse. “Eu quero nascer, quero viver”, nos disse Candeia e nos disse Cartola, compositor e cantor de Preciso em encontrar, presente nesse oráculo. O primeiro cresceu no samba e, adulto, tornou-se policial. Foi nessa condição que ele levou 5 tiros após um desentendimento por conta de um acidente entre carros – foi também nessa condição que ele se tornou um dos compositores mais engajados, no país, a falar sobre a importância do “aquilombamento”. Dez anos depois do crime, em 1975, Candeia nos ofertou Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, escola que era exaltação, alegria e também fortalecimento de uma comunidade negra que começava a ver a fortíssima monetização e o embranquecimento das escolas de samba cariocas. O segundo, o senhor Angenor de Oliveira imortalizado enquanto Cartola, passou por diversos quase ocasos na vida. Fez música deles: “me lembro dos tempos de outrora, que quase me roubam a esperança e a fé”. Mas, já antes, anunciou: “toda tristeza que havia, agora expulsei com a canção que chegou”. Era pedreiro-artista, porque estas atividades não são dicotômicas (suor, sinapse). Como o parceiro da Portela, ele, Mangueira, se recusou a silenciar. Não romantizaram o sofrimento. Também se prontificaram para uma disputa com ele. Às vezes, um ganhava. Às vezes, o outro. Assim, atravessaram o muro.

Eu quero nascer, quero viver.

Há outro aspecto da pele do Brasil que este Oráculo Popular nos oferece. Nestas músicas, como na literatura, questões que nos desenham se repetem: a pesquisa e seu resultado demonstram que são os homens a maioria dos que elevaram a voz em praça pública. São eles que em sua maioria aparecem nas bandeiras, estandartes, gritos. Nos registros musicais, nas composições, arranjos. Mas, nestes sambas, é sabido que elas estiveram sempre presentes não só ofertando banquetes durante as rodas - o famoso feijão da Vicentina ou o de Dona Neném cantados por Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho -, mas criando e cantando. Ivone Lara, Clementina de Jesus, Leci Brandão, Beth Carvalho, Jovelina Pérola Negra: elas, poucas numericamente em relação a eles, representam as tantas outras mulheres que, diferentemente delas, não chegaram aos espaços de visibilidade. Não foi por falta de talento, mas por uma ordem cultural que antes e ainda agora sugere o espaço público como masculino e o privado como feminino (procurem saber sobre a pernambucana Zélia Barbosa, cantora que lançou um único e excelente disco e cuja voz canta em algum lugar). Mas elas cantaram e, como eles, também conseguiram (e eu imagino aqui os vagalhões atravessados) costurar alegria e dor com música. Criaram uma sala de chão de cimento onde era possível dançar como Beleza da Rosa um dia dançou.

Pois é
É, foi ruim à beça
Mas pensei depressa
Numa solução para a depressão
Fui ao violão

Fiz alguns acordes
Mas pela desordem do meu coração
Não foi mole não
Quase que sofri desilusão
Quase que sofri desilusão

(Tristeza)

Tristeza, tristeza foi assim se aproveitando
Pra tentar se aproximar
Ai de mim
Se não fosse o pandeiro e o ganzá e o tamborim
Pra ajudar a marcar meu tamborim
Pra ajudar a marcar

Logo eu com meu sorriso aberto
E o paraíso perto, pra vida melhorar
Malandro desse tipo
Que balança mais não cai

De qualquer jeito vai
Ficar bem mais legal

Pra nivelar
A vida em alto-astral
Pra nivelar
A vida em alto-astral
Pra nivelar
A vida em alto-astral


(uma vez, era criança, alguém olhou para mim, talvez uma das minhas irmãs, e me chamou de Jovelina Pérola Negra. O sentido era de ofensa, e a cor da pele retinta o maior demérito ali sugerido. Além de mulher, é muito preta. Mulher, preta, do morro. Ué: eu era. Nunca esqueci o meu espanto em saber que me percebiam tão escura, afinal era classificada geralmente como “morena” ou “índia”. Termos que atenuam o estigma - quando ele opera firme, tudo o que não se quer é estar atrelado ao seu calcanhar. Foi um dos primeiros clarões sobre o racismo que me lembro. E Jovelina estava lá).

Com ela, me acompanha Clementina, impressa nas bandeiras desse oráculo. Ela que canta aquilo o que deveria ser passado para sempre, mas que insiste – por vontade e irresponsabilidade políticas – em retornar. “Eu andava perambulando sem ter nada para comer/fui pedir às almas santas para vir me socorrer”. Ouvi-la em música ou vê-la em flâmula neste tempo de bichos mortais e invisíveis, quando as taxas de fome aumentam entre a população brasileira, provoca um pipoco de sentidos: simbolicamente, a Clementina que canta é a Clementina que mais sofre, na pele, com mais essa tentativa de arrasto. Ouvi-la enquanto escrevo e enquanto leio é também ouvir lá fora – e, meu bem, lá fora não está bom. Repele-se Clementina, Candeia, Ivone ou Cartola. Não são muitos, mas, sobre motocicletas pelas capitais, em midiáticas performances de virilidade, eles fazem barulho e ameaçam. Ainda a ilusão de que ser homem bastaria.

Mas se eu, tu e todo mundo tememos pelo nosso futuro, é também esse temor que leva até a ação. Sambar é sonhar, Batatinha. Não necessariamente nessa ordem. Rezemos pelo direito de ambas. Rezemos para um bom tempo, minha nega. Para não ter tempo ruim.

Eu vejo as bandeiras que contam o Brasil, vejo as bandeiras de Haroldo, com seus cabelos cheios de vida e cheios de samba, e penso: reza é rua, a reza é fala, a reza é arma, a reza é um artista que parece silencioso, mas que canta. A reza é Beleza da Rosa. E Beleza da Rosa é o oráculo.

Olhei para ela e perguntei: e como viveremos?

Debaixo da árvore, mas com o chão de cimento sob os pés, ela me respondeu: em verso, gesto, bandeira.



Fabiana Moraes é jornalista, professora e pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (NDC/UFPE). Foi repórter especial do Jornal do Commercio, lançou vários livros desenvolvendo reportagens que publicou. Além de Os Sertões - Um livro reportagem (Cepe Editora, 2010), lançou Nabuco em pretos e brancos (Editora Massangana, 2012) , No país do racismo institucional (2013), e O nascimento de Joicy - Transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem (2015). Como repórter conquistou os prêmios Cristina Tavares de Jornalismo e o Embratel de Cultura, e como escritora foi duas vezes finalista do Prêmio Jabuti.